Prisões sobrecarregadas da América Latina

Comunidade Segura
Sexta-feira, 21 de enero, 2011

A Argentina, país de trânsito na indústria da cocaína, endureceu sua legislação penal sobre drogas durante o curso do século XX. Ainda que seu nascimento, na década de 1920, esteja ligado a fatores domésticos, desde a década de 1960, as penas foram se agravando e os delitos configurando-se ao ritmo dos instrumentos de direito internacional das Nações Unidas sobre o assunto.

Em 1974, foi sancionada a primeira lei especial sobre entorpecentes (Nº 20.771), imbuída da "doutrina da segurança nacional" e relacionando os termos droga e "subversão", o que agravou as penas tanto para o tráfico como para o consumo.

Em finais da década de 1980, influenciada pelos ares da recente Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Viena, 1988), ela foi substituída pela ainda vigente lei Nº 23.737. Esta última, apesar de diminuir a pena por posse para consumo (de um mês a dois anos de prisão), agravou as por condutas de tráfico de entorpecentes, com penas de quatro a 15 anos de prisão.

A aplicação da referida lei, em especial pela polícia, fez com que, na década de 1990, fosse intensificada a utilização da ferramenta estatal em relação às drogas. Porém, longe de recair sobre os fenômenos mais lesivos, acabou atuando sobre suas manifestações menores: os usuários de drogas e os elos mais fracos da cadeia do tráfico.

Uma das fontes consultadas permite deduzir como o encarceramento por crimes de drogas aumentou nesse período até se converter em um terço da população das prisões federais (ver quadro), proporção que se mantém até nossos dias. Enquanto, em 1985, havia 33 pessoas detidas, em 1989 esse número aumentou para 332, e assim seguiu durante os anos seguintes; em 1995, a cifra era de 1.400 e, no ano 2000, encontrava-se em 1.872.

Porém, apesar de contribuir para o aumento da população carcerária, as prisões por crimes relacionados às drogas transformaram a demografia das prisões federais ao atrair para elas uma maior quantidade de mulheres e estrangeiros que até o momento não tinham tanta representação nesse universo.

Durante a década de 1990, a quantidade de mulheres encarceradas dobrou sendo que dois terços se encontravam ali por terem cometido crimes de tráfico de drogas. Em 1984, havia 100 mulheres encarceradas; em 1989, chegavam a 253; em 1995, eram 572; em 2000, 718; em 2004, chegaram a 1010.

A proporção de estrangeiros na prisão por crimes de drogas é semelhante e, quando ambas as condições se combinam, os números costumam ser ainda maiores. Segundo um relatório de 2008 do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC), 80% das mulheres estrangeiras estavam detidas em prisões federais por tráfico de entorpecentes.

A partir dos dados e depoimentos recolhidos, pode-se afirmar que a maioria dessas pessoas participou de ações vinculadas ao tráfico de entorpecentes como atores menores e levados a ele por situações de vulnerabilidade, que, no caso das mulheres, são acentuadas e, se são estrangeiras, mais ainda.

Nesse sentido, repetem-se as histórias em que o tráfico de drogas em pequena escala nos bairros pobres de Buenos Aires e seus arredores se torna uma maneira de suprir as necessidades econômicas das famílias chefiadas por mulheres, muitas vezes com vários filhos, enquanto lidam com as demandas da família.

Também se multiplicam os relatos de pessoas que fazem transportes de drogas dentro ou pelas fronteiras, impulsionados por diversas necessidades. Nesses casos, que incluem aqueles que ingerem a substância como forma de escondê-la, uma vez tomada a decisão de envolver-se nessas atividades, surgem as ameaças e a impossibilidade de sair desse ciclo. Essas pessoas, inclusive, costumam ser delatadas às forças de segurança como forma de distração.

O tempo passado no cárcere, longe de resolver essas situações de vulnerabilidade, as agrava, dificultando, uma vez fora da prisão, a possibilidade de encontrar emprego e deixando-os à beira da reincidência, além de estigmatizar a pessoa e sua família. Nesse ponto, merece ser destacado que a estadia na prisão repercute sobre os filhos de muitas mulheres, alguns dos quais, em especial os de menor idade, costumam acompanhá-las em sua estadia.

Consequentemente, enquanto as leis penais sobre drogas e sua aplicação continuarem recaindo sobre os atores menores do tráfico, não só não serão alcançados êxitos mais do que momentâneos - alimentando mais a ilusão do que a contenção do tráfico de entorpecentes -, como também, ao provocar a prisão de pessoas em situação de vulnerabilidade por diversas condições (pobreza, gênero, nacionalidade), muitas vezes simultâneas, agrava-se a situação em que já se encontravam.

Por esse motivo, é necessário repensar o conteúdo das leis de drogas e a forma em que são aplicadas, se queremos que elas atuem sobre os atores mais importantes e de maior nocividade dentro do tráfico de drogas. Os elos mais fracos, muitos dos quais se encontram em situações de vulnerabilidade, merecem outro tipo de respostas estatais, mesmo quando suas condutas estejam contempladas na lei penal. Somente assim será possível construir leis de drogas mais eficazes, equilibradas e humanas.

Detidos por crimes de drogas no SPF (1985-2000)

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 Fonte: Conselho Nacional da Mulher (Pesquisa sobre a população penal feminina alojada no SPF, ano 2001).

O presente texto é uma síntese do relatório correspondente à Argentina, cuja versão resumida pode ser lida na obra "Sistemas sobrecarregados: leis de drogas e prisões na América Latina", que aprofunda a questão das prisões por crimes de drogas na região (disponível em: http://www.druglawreform.info/es/eventos/item/941-estudio-revela-patron-sobre-encarcelamiento-de-delitos-de-drogas-en-america-latina).

* Advogado pela Universidade de Buenos Aires (UBA) desde 1998. Também é docente e pesquisador da UBA. Trabalha no Poder Judiciário da Nação desde 1993, sendo, desde 2001, Secretário de Juizado no Fórum Penal Federal. Integrante da Intercambios AC, ONG com trajetória no tema das políticas de drogas.